segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Portugal parece-se muito com a FIFA. Mas não é só pelo motivo que estão a pensar...

"Tudo o que pode ser escrito pode ser escrito claramente." (autor desconhecido)

Há alguns anos resolvi ler as "Leis do Jogo" de futebol, para tentar compreender a diferença entre um comportamento mereceder de falta, cartão amarelo ou cartão vermelho. Muito me surpreendi ao ver que entre as 17 regras se encontram descrições detalhadas do procedimento a realizar quando a bola deve ser reposta em jogo pela mão do árbitro  (uma situação que quase nunca se verifica no jogo moderno) mas apenas se encontram descrições vagas e extraordinariamente subjectivas da diferença entre uma falta e um cartão amarelo. As leis do Jogo não foram escritas ontem: têm século e meio de idade, e foram já revistas oito vezes. Os cartões amarelos e vermelhos foram introduzidaos em 1970, e houve várias oportunidades para clarificar as regras. Concluí então que tal indefinição só podia ser uma decisão voluntária, destinada a criar oportunidades de "ruído" e ambiguidade, quiçá até de manipulação  ("preservar a magia do jogo", na curiosa tradução usada pelos "responsáveis" pelo futebol).

Sinto algo muito semelhante ao ler os parágrafos da Constituição da República Portuguesa em que se trata da nomeação e demissão do governo e sua relação com a composição da Assembleia da República. Os ilustres autores do augusto texto que rege a nossa polis conseguiram a invejável proeza de, apesar dos muitos parágrafos (dispersos por várias secções) dedicados a este assunto, deixar em completa indefinição o procedimento concreto a seguir :

Pelo artigo 187º, o Primeiro-Ministro é nomeado "tendo em conta os resultados eleitorais"... Nada mais é dito quanto à sua escolha: não tem de ter sido eleito deputado, não tem de ser líder ou membro do partido mais votado (ou de qualquer outro), nada!! Fica ao critério do Presidente (deve ser para "preservar a magia da democracia").

O artigo 195º diz que a rejeição de um programa de Governo implica a demissão do governo. Pelo artigo 186º , o governo rejeitado fica em gestão até posse de um novo governo. Nada é dito quanto ao prazo de formação do novo governo, nem quanto à escolha de um novo primeiro-ministro. Pode ficar em gestão até às legislativas seguintes, sem contradição com o texto da Constituição.  E sem contradição se pode, pelo contrário, voltar a aplicar o artigo 187º (o Primeiro-Ministro é nomeado "tendo em conta os resultados eleitorais"...)  com toda a sua ambiguidade, eventualmente convidando um deputado do segundo partido mais votado a ser Primeiro-ministro de um governo em que esse partido se junte ao partido mais votado, cujo governo tenha acabado de ser derrubado.

Os notáveis constitucionalistas e jurisconsultos esgrimirão argumentos a favor de uma ou outra interpretação, mas uma Constituição que (apesar de conter mais de 290 artigos),  exige especialistas para interpretar algo tão fundamental como a escolha de um Governo só pode estar mal-escrita. Como as "Leis do Jogo" da FIFA....

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